18.11.05

Transição (ou exorcismo, do jeito que o Zeca gostou)

Por se tratar de um texto emblemático (termo que uso em homenagem ao Maurício, da Preto & Branco), resgato do blog antigo esta "carta ao irmão", mesmo contrariando meus fiéis (a fiel que opinou, no caso). Daqui pra frente, só coisas novas. Mas só quando eu voltar a ser Ulisses.

Oi, irmão, tudo bem?

É, eu sei. Nunca mais, eu disse. Me esquece. Eu sei. É que ouvi tua música.

O porteiro ouviu no rádio, perguntou se era meu parente, mesmo sobrenome. Disse que não. Não tenho parentes, não tenho ninguém, sou um homem só, eu disse. Mas baixei a música pela internet. Bonita. Você sabe que eu sempre gostei do que você compõe. Bonita mesmo. Parabéns.

Fico contente em saber que você está bem, levando a tua vida, mesmo depois de tudo o que aconteceu. Acredito que você esteja feliz, tá trabalhando, muito bom.

Mentira. Tudo mentira. Como você se atreve a ter uma vida depois do que fez com a minha?

É, eu sei. Sei exatamente o que você vai dizer. Não tenho culpa se você foi burro o bastante pra pegar uma carona com teu irmão mesmo sabendo que ele estava embriagado. É isso, não é? A culpa é minha. Por confiar. Por me embriagar, também. Por me deixar levar pela velocidade, era tão bom o vento no rosto, a paisagem passando borrada pela janela, vai, acelera, eu dizia, e você acelerou e nós corremos tanto que capotamos no nada, derrapamos em nós mesmos, quatro voltas, disseram, o carro capotou quatro vezes e nos cuspiu pra fora.

Você se machucou, eu sei. Ainda deve ter aqueles pesadelos. Mas você está aí, feliz, tocando. É, você tem os dois braços, ainda pode tocar. A gente ia fazer um disco juntos, lembra? E agora eu não consigo nem assinar meu nome.

Você não entendeu o nunca mais, eu sei. Mas como eu podia deixar meu pequeno me ver daquele jeito, inevitável a auto-compaixão, queria fazer você sentir pena de mim, remorso pelo que me fez, mas não queria que você visse. Não queria que você sofresse por me ver despedaçado, sangrando todas as noites, incomodando os vizinhos com os gritos, murros na parede, sim, um único braço é capaz de esmurrar uma parede com muita força.

Nunca acreditei naquelas histórias de pessoas que sentem dor em membros amputados. Sentir dor no que não existe, que bobagem. E aqui estou eu, incomodado por uma dor constante num braço que virou asfalto, forte essa frase, não? Sem possibilidade de analgésico. Sem poder fazer aquelas coisas bonitas que íamos criar juntos, sentindo uma dor absurda num pedaço do meu corpo que não existe mais, que me foi tirado numa corrida pra lugar algum.

E você aí, comentários favoráveis, grandes elogios. Tua vida continua. Queria conseguir ficar feliz com isso. Até consigo, um pouco, meu pequeno finalmente produzindo, mostrando pro mundo o que sabe fazer tão bem. Mas tudo o que me ocorre dizer é “não é justo”. Você estava dirigindo. E eu é que estou morto agora.

Azar o seu, que nunca soube dirigir, você dirá. Talvez você tenha razão.

O porteiro só conhece a minha cara porque vem receber o condomínio todo mês, essa porcaria de prédio que não tem a capacidade de emitir um boleto bancário com código de barras. Correspondência, por debaixo da porta. Comida, remédios, tudo delivery, os entregadores sobem e me olham com aquela cara de dó, coitado do cara, nem deve conseguir preparar a própria comida. Sem gorjeta, que eu não dou nada pra quem tem pena de mim.

Mas quero que você tenha pena de mim, e por isso não posso te dar mais nada. Mesmo que não fosse assim, não poderia. Não sobrou nada. Nem é um problema que eu não consiga assinar meu nome. Não importa. Voltei a ser Odisseu, eu que era Ulisses tentando voltar pra Ítaca, minha casa, o Kansas do Mágico de Oz.

Por isso, se eu te ferir com estas palavras, não há problema. Agora Odisseu, ninguém sou. Udeis te feriu. Estás a salvo.

Um comentário:

Branco Leone disse...

Caráio, que texto bom! Você escreve assim, é? Vixe...
Beijo
Branco