4.6.14

Viagem através de um misto quente

O título se explica porque a reflexão se deu enquanto eu fazia um misto quente, sabe-se lá por quê. Dito isso, passemos à reflexão em si: fui convidada (ou entrei de penetra, não sei ao certo) para um evento virtual de confraternização entre Sonserina e Grifinória (se você não conhece essas palavras, apele para o Google e aceite meus sentimentos). E fiquei pensando que, se Harry Potter tivesse nascido no Brasil, a maravilhosa cerveja amanteigada teria sido censurada. Uma perda inestimável para o imaginário de muita gente, eu inclusive, que não canso de imaginar o sabor dessa iguaria (faltou coragem para enfiar uma colher de manteiga num copo de cerveja, confesso). Daí passei para o politicamente correto. Óbvio que piadas devem ser feitas com opressores, não com oprimidos, para causar reflexão. Óbvio que humor que envolva incitação à violência e preconceito deve ser rechaçado energicamente. Mas fiquei pensando nas convenções que ditam o uso de “afrodescendente” ao invés de “negro”, por exemplo. E me ocorreu que convencionar o uso de uma palavra pela outra não adianta muita coisa sem a explicação para tal atitude. De nada serve o politicamente correto se ele não vier atrelado à educação, ao esclarecimento, à denúncia, ao questionamento. A língua de um povo é viva. O dia em que o uso de “afrodescendente” no lugar de “negro” for espontâneo, e não obrigatório, aí estaremos bem. 

1.9.08

Escusas

Para que ninguém conclua que este blog (ou sua autora) foi dessa pra melhor, informo que estamos num período de profunda inatividade literária por motivos de força maior e acadêmica. Novas bobagens, digo, postagens, só depois de depositar a dissertação de mestrado. Prometo escrever algo no dia 3 de dezembro. Estarei de ressaca, mas tudo bem.

12.5.08

No title, baby

16 graus em São Paulo. Noite de céu encoberto. Vinho na taça, cena batida, ninguém merece recomeçar assim depois de mais de um ano sem escrever nada que preste. E eu que vivo da escrita. O que faz tudo muito mais triste.

Procuro um cigarro e lembro que parei de fumar, de vez, sem janelas pra pequenos desejos. Considerando que os grandes desejos se foram, fica fácil e quase matemático ver o que sobrou. Médios desejos? Isso não existe. E aí também fica fácil ver o que sou. Fácil lembrar de Pessoa, mas aí também já é demais. “Não sou nada, nunca serei nada”, ora, por favor... E é claro que não tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Movimentos involuntários. Sabe quando uma parte do seu corpo fica “pulando”, ou cria vida própria? Um olho trêmulo, um músculo saltitante, uma lágrima que sai sem querer na hora de fazer a sobrancelha, coisas tão prosaicas. É quase isso, agora. Escrevo involuntariamente. Talvez por isso a falta de qualidade. Ninguém dança no Municipal à base de movimentos involuntários.

Tem uma Fofolete olhando pra mim fixamente. Não sei o que isso quer dizer. E é essa a beleza da coisa toda, entende? Isso, e tudo o mais, não quer dizer absolutamente nada.

OBS.: Aos que se espantam pela presença de uma taça de vinho em plena segunda-feira, aviso que isso tudo é só literatura, baby.

10.4.07

Pequenas descobertas 2

Elliot Ness não nasceu em Chicago. Na verdade, ele nasceu no Rio Grande do Sul, numa cidade chamada Não-Me-Toque.

17.2.07

Desfile

nada é do tamanho
do que sinto agora em mim
nada do que sinto
foi sentido tanto assim
só a dor constrói
só o amor que dói
só mas com amor
meu mundo é maior
nada é do tamanho

do que já desfila em mim
filas de escolas
com milhões de tamborins
e eu sem ter lugar
pra tanto bem e tanto mal
tudo isso vem
de Pedro Álvares Cabral
desde os ancestrais
desde os canibais
desde os meus avós
desde os meus pais
desde que nasci
acho natural
tanta solidão
no esplendor do carnaval

(plagiando a toureiramiga, já que esta é uma música da Ná Ozzetti, do mesmo CD que tem os sanfoneiros...)

12.1.07

Viva o Youtube

http://www.youtube.com/watch?v=edWmra1bF08

E ainda querem proibir a gente de acessar o Youtube! Absurdo! Aonde mais poderíamos encontrar isso?

Pra quem não conhece, apresento Las Grecas. Convém reparar nos movimentos frenéticos e um tanto disléxicos da beldade da direita. Quem quiser, cante juntinho. Não sei se a escrita está correta, mas não importa: o refrão é o melhor! E se alguém souber que catzo é “acombenzo”, eu agradeço.

Te estoy amando locamente,

pero no sé como te lo voy a decir.
Quisiera que me compremdieras,
y sin darte cuenta te alejas de mi.
Prefiero no pensar,
prefiero no sufrir.
Lo que quiero es que me beses,
recuerda que deseo tenerte muy cerca,
pero sin darte cuenta te alejas de mi

Si me acobenzo,
si me acombenzo,
dame tu ausenci
que sabe a beso,
Nai no nai no na, nai no nai no na,
nai no nai, nai no nai, nai no na.
Nai no nai no na, nai no nai no na,
nai no nai, nai no nai, nai no na.

5.1.07

Puf

(numa referência ao querido Rabuti)

Que bom que seja assim. Ótimo, então, tá combinado. Ano Novo em Sampa, sem praia, sete ondas, areia incomodando na roupa branca, só uma puta festa pra compensar, mesmo. Muita gente, alegria, comida até a tampa, bebida, então, vixe. Vai ser demais de bom. Chego lá pelas 10.

Nossa, quanta gente que eu amo. Nunca passei um reveillon assim, tão cercada de amor. Um monte de crianças e gente feliz, rindo, se abraçando. Ano 9, mudanças, transformações, vai ser demais de bom. Já tô até vendo. Difícil, que mudar custa, ô se custa. Mas é preciso. Da mesma forma que é preciso encher o copo a toda hora, muito gelo, tá calor, mas muito, muito mais uísque. Delícia. O corpo ficando leve, o riso, solto. E a contagem regressiva. Meia noite. Feliz Ano Novo.

Aí aconteceu. Será física quântica? Vai ver foi só o uísque. Um fenômeno paranormal, talvez, essas coisas devem acontecer em horas mágicas como essa, embora o horário de verão, a mágica não devia ser agora, mas que seja. Aconteceu naquela hora.

Pais abraçando filhos, namorados abraçando namoradas, mulheres abraçando maridos. E meu corpo devidamente vestido de branco suspenso numa espera de espectador. Trinta segundos de completa solidão. Só olhando, tentando rir de início, mas depois um estranhamento, como estar, sei lá, em outra dimensão? Talvez atrás de um vidro espelhado, vendo sem ser vista. Até um silêncio, acredita? Trinta segundos que pareciam dias, anos, todos os meus anos de solidão ali concentrados, tipo buraco negro, sabe? Nunca passei um reveillon assim, tão cercada de nada.

Até que alguém me viu e resolveu me abraçar. Nem sei se ele notou meu constrangimento, o não saber o que fazer com as mãos, olhando os abraços como se no cinema, escuro em volta e a cena só de ver, não de tocar. Cheia de vergonha pelo meu isolamento naquela dimensão. Um abraço-bóia-salva-vidas, um puxão pelos cabelos e a tentativa de aspirar o ar. Inútil.

Depois disso, o tempo parece correr diferente. Sem entender bem a passagem dos dias e das noites, ainda naquela dimensão de bolha inacessível. Será essa a mudança? Se for, já tô até vendo. Vai ser demais de bom.

28.12.06

Fim de festa

(odeio final de ano)

Another party's over
And I'm left cold sober
My baby left me for somebody new
I don't wanna talk about it
Want to forget about it
Wanna be intoxicated with that special brew
So come and get me
Let me
Get in that sinking feeling
That says my heart is on an all time low - So
Don't expect me
To behave perfectly
And wear that sunny smile
My guess is I'm in for a cloudy and overcast
Don't try and stop me
'Cos I'm heading for that stormy weather soon
I'm causing a mild sensation
With this new occupation
I'm permanently glued
To this extraordinary mood so now move over
Let me take over
With my melancholy blues
I'm causing a mild sensation
With this new occupation
I'm in the news
I'm just getting used to my new exposure
So come into my enclosure
And meet my
Melancholy blues

17.11.06

Felinos

(pra Bruma)

- Eu quero que você abra a torneira.

- Agora tô ocupada, peraí.

- Não, eu quero agora. E me ponha em cima da pia também.

- Espera...

- Por favooooooooooor!

- Ô, Cristo Redentor... Tô indo, tô indo...

...............

- Me dá matinho?

- Não tem matinho, ó. Acabou. Tem que esperar crescer.

- Eu quero matinho!!!!

- NÃO TEM!

- Por favor, por favor, por favor, por favor, por favor, por favor, por favor, por favor...

- Tá bom, tá bom! Pega esse pequenininho aqui.

..........................

- Sai daqui, agora não quero carinho.

- Ô, minha bonitinha, minha coisa mais linda, minha... ÁÁÁÁIIIII!!! Por que você me mordeu?

- Eu avisei que não queria carinho agora...

.........................................

- Oi!

- Dá pra sair de cima de mim?

- Não. Quero ficar aqui, bem na sua cara. Coça atrás da minha orelha?

..................................

- Chega pra lá que eu quero deitar aqui.

- Vem, coisinha, vem deitar aqui comigo, vem...

- Rrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr........ zzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz.......

....................................

Alguém pode me explicar como é possível amar um bicho assim?

Ou como se faz pra não amar...

9.9.06

Meia dúzia de coisas que aprendi sozinho

(plagiando Manuel com descaramento e muito gosto)


Em roupa verde, lágrima demora mais a secar do que água de pia.

Panela velha só faz comida boa se a dona tem lá seus temperos.

Vinho mancha. Mas sai.

A cicatriz que mais existe é aquela do machucado mais a toa.

Cigarro só faz mal quando é sem querer.

No dia seguinte, tudo que era verdade não aparece.

31.8.06

Curta-metragem

Dor de estômago. Reflexo de um desleixo que chegou na alimentação, e isso é mau sinal, muito mau. Coisas por fazer, muitas. Ler livros, escrever textos, cuidar do corpo e da mente, ganhar dinheiro, lavar a louça, ao menos. Escreveria “ter prazer” se isso fosse algo a ser feito. Adiantaria se fosse?

Era um ponto estranho, esse a que chegara não se sabe como, de que jeito, por quais meios e caminhos. Um ponto a que resolveu chamar de “dieta de hipertenso”: pouco sal, quase nenhum sabor. Mantinha a vida confortável, tudo funcionando. E só.

Num passado não muito distante, ansiava. Que pode ser almejar, e era. Mas também pode ser agoniar-se, consumir-se. Nem isso. Agora era só ânsia mesmo, enjôo, náusea, o maldito estômago. Que triste conclusão quando tudo está bem, afinal. Sem sustos. O susto, digamos, de um sapato vermelho, saltos altíssimos, o andar elegante e ensaiado, vestido quase transparente sob o casaco importado, os longos cabelos cuidadosamente em desleixo. O cigarro – filtro vermelho pelo batom – atirado ao chão, esmagado com charme pelo sapato cor de sangue quase da mesma forma como seu corpo contra o muro, maldito caminhão.

(A última cena mistura muitos tons de vermelho)

31.7.06

Letramento

Final de domingo diferente, visita dos tios, muita brincadeira, delícia de dia.

- Letícia, você já fez a lição?

- Não, mamãe.

- Como, não? Já tá de noite e amanhã de manhã vamos ao médico! Pega seu caderno agora! Vamos, vamos!

Desânimo, lentidão. Caderno aberto sobre a mesa.

- Deixa eu ver. Ah, tá fácil, é só copiar a frase três vezes. Vai, Letícia, sem moleza, hein? Vai, “Fábio afia a faca”. Fácil, né? Então vai. “Fábio afia a faca”.

Sozinha na sala, lápis na mão direita, a pequena cabeça apoiada na mão esquerda, um ar desolado e a pergunta que não quer calar:

- Mas quem é Fábio?

5.7.06

Cegueira oficial

- Você está sorrindo.

- Como?

- Na foto. Você está sorrindo.

- Pois é, eu tava feliz...

- Não pode.

- Não pode estar feliz?

Ela suspira, meio indignada, por trás do computador, da pilha de papéis, dos carimbos.

- Não pode sorrir na foto. E, veja, você está com a cabeça inclinada. Não pode.

- Mas como assim, não pode? Não entendi...

Mais indignação. Agora ela sorri, como que lamentando compreensivamente minha burrice, feito mãe diante de uma bobagem proferida pelo filho.

- Foto 3 por 4 não pode ser assim. Você tem que estar ereta e séria. Assim, com a cabeça pro lado e sorrindo, não pode.

- Mas quem disse que não pode?

- Eu estou dizendo.

Engulo a vontade de perguntar “mas quem é você pra dizer isso?”, temendo uma vingança em forma de mais burocracia e, muito amigavelmente, insisto.

- Tudo bem, não estou querendo discordar, só queria entender... É lei? Onde tá escrito?

- E precisa estar escrito em algum lugar?

- Claro que sim. Na Constituição. No Código Civil. Nas leis de trânsito. Na Bíblia, no Alcorão, que seja, mas tem que estar escrito em algum lugar, pra ser uma coisa oficial, sabe?

Vejo que ela vacila, tentando contornar a raiva ou a própria ignorância, sei lá. Lamentando, talvez, não poder dar uma de Arnaldo César Coelho e dizer “a regra é clara”, ou algo no gênero.

- Você já viu alguma foto de documento assim?

- Não...

- Nem eu. Então não pode.

- Quer dizer que, se você tivesse apitado a partida em que o Leônidas da Silva fez o primeiro gol de bicicleta da história, você anularia o gol, porque ninguém nunca tinha visto um gol daquele jeito antes?

- O quê?

- É. Se você fosse o juiz do jogo em que o Bernard inventou o saque Jornada nas Estrelas, você daria ponto pro adversário, porque ninguém nunca tinha visto um saque daqueles?

- Olha, me desculpe, mas eu não estou entendo o que você tá dizendo...

Ela é jovem. Nem devia ser nascida em 1982. Nunca deve ter ouvido falar no Diamante Negro. Escolhi mal os exemplos.

- Você vai mandar anular a eleição do Lula só porque nunca tinha visto um presidente com 9 dedos antes?

- Como?!

- Esquece, esquece. Onde eu posso tirar outra foto?

27.6.06

Precaução

Informo aos interessados que o nome do goleiro de Gana é Adjei. Freezer nele!

22.6.06

Mãe 2

Mais ou menos 30 minutos do segundo tempo.

- Mãe, isso é hora de ligar?

- Desculpe... Liguei no intervalo, você não atendeu... Eu precisava te falar. Escrevi o nome dele num papelzinho e coloquei no freezer.

- O que? Nome de quem, mãe?

- Do goleiro do Japão...

16.6.06

Errata

"A teoria da recepção manifestou a importância do leitor na co-produção do significado do texto e destacou a ativa implicação do indivíduo receptor na atribuição de significados durante o ato de leitura. Esta orientação serviu para precisar que ler não é só decodificar os signos do sistema da língua, como também construir significados. (...) O leitor adapta a informação recebida pelo texto, matiza-a em virtude das suas particulares condicionantes de recepção, estabelecendo conexões entre o que o texto diz, o que sugere e os seus conhecimentos prévios sobre a temática, sobre o estilo etc. do texto com o que interatua."
(A Estética da Recepção na Literatura Infantil - Armindo Mesquita - http://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/infantil/armindo1.rtf)

Em virtude do acima exposto, e já que não há controle sobre a recepção de textos - por mais evidentemente ficcionais que eles sejam -, o post de título "Pelego", postado ontem, foi excluído deste blog. E que Deus ajude a quem tenta fazer literatura.

15.6.06

Feriado

Uma, quarenta. Outra, setenta. Viajavam juntas como se fosse uma despedida. Um bota-fora de sete dias pelo Sul, que é menos quente, minha filha, por favor, Nordeste não.

Café da manhã de hotel quatro estrelas. Mãe, calma, olha a diabete. Mas é tanta coisa gostosa, só um pouquinho. Ué, você só vai comer isso? Não tô com fome agora. Mas só isso, café com leite, pão com manteiga, só? É, mãe, só. Quando você era criança odiava isso, eu insistia mas você só queria leite com chocolate e sucrilho.

Essas viagens só servem pra engordar a gente, parece que acabamos de tomar café e já estamos almoçando. É, mas pelo seu prato, parece que você não come há meses. Quer parar de pegar no meu pé? Antigamente era eu que fazia isso com você. É, mas agora sou eu que tenho que ficar cuidando do seu colesterol. Eu sei me cuidar muito bem. É, tô vendo. Cara feia, caramba, pra quê? Desculpa, mãe, que bobagem, come o que quiser, quer um pouco de carpaccio? Nunca comi. Então experimenta, cê vai gostar. Ué, arroz e feijão? É, uai, não pode? Mas com tanta coisa pra escolher? Olha essa truta com molho de maracujá, esse purê de ervas! Mas, mãe, eu quero arroz e feijão, e essa carninha de panela, nem é tão boa como a sua, mas tá gostoso. Eu não tô entendendo nada. Quando você era criança, detestava arroz e feijão, era uma luta te fazer comer, só queria batata frita. Cê não vai pegar batata frita?

Nossa, quanto CD. Tem uma loja assim em São Paulo também, mãe. É, mas lá você nunca me levou. Eu sei. Vou levar. Não precisa, prefiro aqui. É, mas eu vou levar lá em São Paulo também, no dia em que a gente for no japonês. Êba. Olha, esse CD é bárbaro, vou levar. O quê?! Credo, mãe, que é isso, não precisa gritar. Como, o que é isso? Eu é que pergunto. Você vai levar um CD da Doris Day? Mãe, eu adoro a Doris Day. Mas como, como? Quando eu queria ouvir Doris Day você ficava reclamando, nem me deixava ouvir, eu tinha que ficar escutando Led Zeppelin. Eu ainda gosto do Led Zeppellin. É, mas você odiava a Doris Day. Quem gostava dela era eu.

E agora, aonde a gente vai? Como assim, mãe, não tá cansada? E desde quando concerto cansa? Cê entendeu. Ah, vamos tomar um chocolate quente. Sua diabete vai explodir no próximo exame... Seu pai morreu se preocupando com isso e olha só, morreu. Ficou sem tomar chocolate quente quase 10 anos e morreu. Mãe, se ele tivesse tomado chocolate quente, teria morrido há dez anos. É, mas teria morrido rindo. Olha que bonito, morrido rindo tem um som legal. Morridorindo morridorindo morridorindo. Mãe, o Chopin te deixou doida, é? Ué, era você que gostava de prestar atenção nesses sons, nos sons das palavras, lembra? E agora acha isso coisa de doido e quer me levar pra dormir às 11 da noite, quem diria, justo você, que brigava pra passar a noite fora. Mãe, tá frio, só tô preocupada com você. Quando você queria se divertir, você não se preocupava comigo. Agora sou eu que quero me divertir e você fica aí, se preocupando...

Quanto tapa na cara, quanto espelho pra encarar. E ainda é o primeiro dia.

2.6.06

Afinal


Não costumo escrever esse tipo de post aqui, um espaço que idealizei para literatura em outras pessoas que não a primeira. Mas o motivo merece a quebra de protocolo. Finalmente, o há anos extinto "Trevo", de Orides Fontela, foi reeditado. Mais: acrescido da produção dos oito anos últimos da autora. A edição é da Cosacnaify, linda, digna do recheio. Não percam. Vale cada centavo dos R$ 55,00 (na artepaubrasil.com.br está por R$ 44,00).

Abaixo, um pequeno petisco, bom pra abrir o apetite pelo livro...

FALA
Tudo
será difícil de dizer:
a palavra real
nunca é suave.

Tudo será duro:
luz impiedosa
excessiva vivência
consciência demais do ser.

Tudo será
capaz de ferir. Será
agressivamente real.
Tão real que nos despedaça.

Não há piedade nos signos
e nem no amor: o ser
é excessivamente lúcido
e a palavra é densa e nos fere.

(Toda palavra é crueldade.)

12.5.06

...

Então somos “duas senhoras, encharcadas de riso, diante do coruscante ouro da bebida”. Irônica citação de Hilda a iniciar o texto. E ao fundo o Adágio de Albinoni. Não, Clair de Lune, que tinha lua mesmo no céu.

Inesperado e preciso. Foi assim o encontro. Duas senhoras sentaram-se à mesa, uma em frente à outra. Conversaram animadamente. E foram descobrindo caminhos através de histórias do passado. Sim, risos. Família, amigos, amores... Aos poucos, foram chegando ao ponto.

Dói. O ponto é como um alvo, atingido em cheio, no peito.

Despedidas, promessas de um novo encontro, mais feliz. E o ir pra casa por ruas escuras e frias, o cigarro, tudo pontual, marcado, cena de cinema. É outono. Até à noite a luz é mais bonita.

O dia seguinte é como despertar de uma embriaguez. Mas as histórias serão. Tempo de verbo refletindo um cansaço estranhamente otimista. Ilusão, que seja. Duas senhoras se encontraram. Ainda é outono.

4.5.06

Pequenas descobertas 1

Se Pilatos fosse mulher, não seria um lavar de mãos, mas um lixar de unhas.

19.4.06

Contra a tristeza

Ninguém consegue ficar triste tendo em casa um gato e um laser-point...

13.4.06

Exercício

Estou apenas tentando cumprir os compromissos. Sem emoções, ou pelo menos sem demonstrar qualquer uma que seja. Puro protocolo. Invento histórias para dar cor a isso que virou minha vida. Leio livros e me coloco no lugar do protagonista, assisto a filmes e me vejo como o herói, ou aquele vilão meio seboso, ou mesmo um simples figurante, quase parte da paisagem. Pelo menos a sensação de pertencer a algo, ter influência em fatos, determinar ações, ser o fio da meada que conduz a mim mesma por um labirinto sem Ariadne, sem Minotauro, sem penas de pássaros ou colméias que me forneçam cera, construir asas assassinas que me levem de encontro ao sol. Ah, o sol, com seu calor, sua energia que só nos serve a distância, porque de perto.

Incrível como a cerveja desse bar é quente. Por que não tiram desse canal barulhento, ou desligam de uma vez a TV? O banco é preso à barra do balcão, meus joelhos se chocam com os tijolos frios. Um cheiro de fritura, uma luz desnecessária, e essas pessoas que riem tanto por que, meu deus. Meus pulsos doem só de levantar o copo, talvez se aqui dentro fosse mais escuro a sensação de frio fosse menor. Mas não, é uma luz de padaria, de laboratório. E nem vendem a minha marca de cigarro.

Eu podia ir embora, claro. Simplesmente pagar a conta, levantar e procurar um lugar melhor nessa cidade cheia de lugares que podem ser melhores ou piores, depende. Mas não. Autoflagelo. Fico.

É que ninguém. Aqui, não há possibilidades. Uma espécie de segurança. Aqui, ninguém me pega.

Aqui, sou eu que pego, se quiser. E quando quero, é fácil. Às vezes basta olhar, todo mundo é muito atento, deve ser a luz de laboratório, cobaias, testes a serem feitos, não importa o resultado. Dependendo do horário, tem que ser mais. Cruzar as pernas, esquece, esse balcão maldito. Tem que levantar, pedir licença, pegar o guardanapo, o catchup, o palito, a puta que o pariu, mas pegar algo numa mesa ou na outra ponta do balcão, e nesse movimento roçar alguma parte do corpo que não deixe dúvidas. Aí sim, o olhar. Um sorrisinho besta, meu deus, como eles caem nessa? Um ar de presa, de caça abatida, a pata ensanguentada nos dentes de uma armadilha invisível.

Depois é só deixar eles pensarem que a idéia foi deles. Que é deles a ação, a iniciativa, o inevitável “vamos pra um lugar melhor”, sim, os lugares melhores ou piores da cidade. E eu vou, conduzida, sorridente gueixa servil sem dar pinta de mulher rodada, que aí baixa o tesão e dá muito mais trabalho.

Normalmente, o “lugar melhor” é nos fundos do bar, uma rua escura, que isso é o que não falta. Sabe registro de água, aquele murinho? Em baixo, o relógio marcando o consumo, em cima, as pernas abertas, uns beijos babados, um pau que eu nem consigo ver se é bonito. É, tem isso, uns paus bonitos, esteticamente aceitáveis. Que pau, vamos combinar, pau é feio pra caralho. Olha só que frase bonita. Tem isso, também. Frases bonitas.

Que mais? Ah, foi ótimo, claro, a gente se encontra, eu sempre venho aqui. E nunca mais. Aí casa, banho, cama. TV ligada, cigarro, qualquer coisa com teor alcoólico acima de 15. Sem cúmplices. É, testemunhas, bichos, cachorro, gato, peixe, passarinho. Nada. Só eu.

Às vezes não tomo banho. Pra achar que tem mais alguém. É, cheiro. Basta.

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29.3.06

Consegui!

Atenção, fiéis. Depois de longa ausência - ocasionada, entre outras coisas, pela profunda amnésia que me fez deletar da mente meu nome de usuário e senha -, estou de volta. Quer dizer, pelo menos já posso entrar no meu próprio blog... Já é um começo.

5.1.06

A textura das lágrimas

Como um cronópio, resolveu entender a textura das lágrimas, porque era inútil e belo. Na verdade, foi porque “textura das lágrimas” soava bem, era um bom título, e assim tentou. Sem motivos nobres, só pela aparente grandiosidade da coisa.

Começou achando que era puro sal, que alimenta mas dá sede. Pode até matar, em excesso. Mas logo evoluiu para outras formas. Puro sal era o suor. No laboratório, juntou os dois líquidos e viu que ambos se misturavam perfeitamente. Daí achou que lágrima era cansaço. Mas chorou no cinema e abandonou a idéia.

Não era pura, a lágrima. Tipo água das fontes nas montanhas, nada disso. Tinha um gosto, um visgo, um peso. E era quente. Densa mesmo. Por isso achou que era triste. Mas experimentou umas amostras leves, quase translúcidas. Provou. A ponta da língua, apenas, um pouco de medo. Fez cócegas. Não podia ser só tristeza.

Um dia, cronópio bobo andando pelas ruas, tropeçou e caiu. Aparou a queda com as mãos, que ficaram raladas e cheias de sangue. Chorou. Primeiro ficou com raiva e vergonha pelo tombo público, e achou que lágrima era isso. Mas logo as mãos começaram a doer e quase concluiu que lágrima era, enfim, a água que sobra das dores que nos secam. Mas a dor passou, chegou em casa, onde ninguém podia ver seus úmidos olhos de cronópio úmido. E não sabia mais o que deduzir, ainda chorando, quase sem sentir.

Provou o sangue das mãos. Com a mão direita, recolheu uma gota e ficou esfregando aquela coisa morna e vermelha entre os dedos. Com a mão esquerda, fez o mesmo com uma lágrima.

Concluiu, então, que a textura das lágrimas era como a do sangue. Que a gente verte. Mas nos faz viver.

6.12.05

A vírgula de 12,000.00

Agora que o principal envolvido "sumiu", podemos contar essa história que aconteceu naquela época em que o dólar valia ouro. Ou melhor, valia mais que ouro. Época em que CPI poderia significar “Custo Potencial Indexado” ou “Centro de Psicologia Interdisciplinar”, e só. Todo mundo corrompia todo mundo. Empregadas domésticas vendiam o leite em pó roubado da merenda escolar da escola de seus próprios filhos. E quem roubava era o marido. Negociavam-se cargos que iam de ascensorista a ministro. Uma putaria generalizada.

Encarregado pelo “patrão” de comprar o silêncio de um desafeto, Lívio estava até estranhando a sorte incomum que cercava toda a negociação. A coisa ia caminhando perfeitamente e ele até ganhara um computador para trabalhar com maior agilidade, o que lhe valeu o apelido de “moderninho”, já que computadores eram raros naquele tempo. Só faltava acertar valores e demais detalhes logísticos. Nessa etapa final, a comunicação era feita via fax, simulando uma inofensiva doação de mudas de equinácea, planta nativa dos Estados Unidos que possui propriedades imunoestimulantes. Transcreveremos aqui apenas as frases que interessam à compreensão da negociata.

“Prezado sr Alberto A producao de mudas de equinacia esta correndo como planejamos Podemos efetuar o envio do primeiro lote a sede de sua ong Cordialmente Rodrigo”

“Amigo Rodrigo. Recebemos a notícia com enorme satisfação. As mudas são mesmo aquelas anteriormente combinadas? As verdinhas? Abraço, Alberto.”

“Caro Alberto Precisamente Aguardamos orientacao para envio Rodrigo”

“Prezado Rodrigo, peço esclarecimento quanto ao número de lotes e quantidade de mudas por lote. Abraço, Alberto.”

“Alberto Esclarecendo sua duvida 12 mil por lote mensalmente Rodrigo”

“Por quanto tempo?”

“Um ano uai”

Lívio era mineiro.

Finalmente o primeiro “lote” foi entregue, e Lívio/Rodrigo não teve notícias de Alberto por três meses. Já havia esquecido o assunto quando recebeu um fax preocupante.

“Rodrigo, estou muito insatisfeito em ver que nosso acordo não está sendo respeitado. O fato de estarmos falando de uma doação não justifica tal comportamento de sua parte. Não quero esclarecimentos, quero minhas mudas. Alberto.”

Foi bem aí que o pacato espírito mineiro de Lívio resolveu dar lugar a uma indignação de negociante honesto. Má hora, má hora... Sentou-se imediatamente em frente a seu computador e respondeu, cheio de brios.

“Prezado Alberto o acordo esta sendo plenamente respeitado Sugiro que aguarde o passar do tempo para usufruir do total das mudas Sem mais Rodrigo”

Ao ter o silêncio de Alberto como resposta, Lívio acreditou piamente na eficácia de sua atitude impetuosa. Antes de desligar o computador, beijou a tela negra, sorrindo satisfeito com a praticidade dos tempos modernos. E foi pra casa.

Nunca chegou. Passado o susto com a fechada que levou numa rua meio escura, saiu do carro pronto para tomar satisfações. E deu de cara com um Alberto armado de uma cara furiosa – e de um 38.

- Se você acha que eu vou deixar um ignorante me passar a perna, está muito enganado, seu safado!

- Escuta aqui: você me chama de desonesto, me dá uma puta fechada e ainda me chama de ignorante? Você é que é safado, isso sim!

- Desonesto e ignorante, sim. Desonesto porque me prometeu 12 lotes com 12 mil mudas, e só me mandou mil por lote. E ignorante porque não sabe escrever, seus fax não têm pontuação, não têm acento, uma vergonha. Desosnestidade, eu até aceito. Mas não assassina o Português!

- Mas do que você está falando? 12 mil, você entendeu errado, eu... eu... Ah, meu Deus, é o computador! Eu não sei colocar vírgula, nem ponto, nem acento! Eram 12 lotes, mil por lote! 12, vírgula, mil por lote, vírgula, mensalmente! Mil por lote, eu juro!

- Pois da próxima vez use uma Olivetti, vírgula, seu burro, ponto de exclamação!

Morreu, coitado. Ou morreu coitado. Pode escolher.

Para os que não sabem o que é um cronópio...


... aconselho o seguinte: vá a uma loja de armarinhos (os mais jovens não saberão o que é isso) e compre linhas - duas, mas uma azul. Se não adiantar, vá ler o livro do Cortázar, por favor.

http://www.juliocortazar.com.ar/
Acho que todo mundo já assistiu a um filme assim. Um senhor de idade beeeem avançada agoniza num leito de hospital. É “Papai”, no filme. Papai tem um casal de filhos (George e Michael. É um casal porque George é travesti e diz a todos que “George” é abreviação de “Georgette”) e uma esposa bem velhinha, também. Essa é “Mamãe”. Papai já está nas últimas faz tempo mas, estranhamente, não empacota (usamos termos chulos para aliviar a tensão do momento). Tentou-se de tudo, esgotaram-se as alternativas de tratamento, os aparelhos já foram desligados, não há mais nada a fazer a não ser esperar pra anotar a hora da morte no atestado de óbito, que já está pronto, apenas aguardando esse último dado burocrático.

Aí, desenrola-se a cena, o clímax do filme.

Interna – Noite
Quarto de hospital. Na cama, Papai, já desligado de todos os aparelhos. Em volta da cama, Mamãe, George e Michael. George chora baixinho. Michael tenta segurar o choro e está meio roxo pelo esforço.

- Mamãe (se afastando da cama): George, Michael, venham cá, por favor.

George e Michael seguem Mamãe até um canto do quarto, longe da cama onde está Papai.

- Mamãe: Queridos, precisamos libertar Papai.
- Michael (olhos arregalados, um pouco menos roxo): Mamãe, o que a senhora está dizendo?
- George: Mamãe, eutanásia não! Papai não está sofrendo. E eu não quero que ele morra, não quero!
- Mamãe: É disso mesmo que eu estou falando, George. Claro que nenhum de nós quer que Papai morra, mas temos que entender que não há mais o que fazer. Temos que aceitar isso. Papai morreu...
- Michael: Mamãe, não diga bobagens, Papai está respirando, dá pra ver daqui...
- Mamãe: Michael, ele só está vivo ainda porque nossos sentimentos não o deixam partir... Temos que aceitar que é o fim, temos que libertá-lo...

- George (desesperado, aos berros): Não! Não, Mamãe, não! Ele não vai morrer! Olha lá, ele está se recuperando, ele...
- Mamãe (interrompendo o ataque histérico de George, enérgica mas compreensiva): George, pare com isso... Você não vê? Esse tipo de sentimento só serve para adiar a partida de Papai... Temos que aceitar, temos que libertá-lo...
- Michael (pensativo): Mamãe tem razão. Já assisti a um filme assim.
- George (tentando enxugar as lágrimas sem borrar a maquiagem): Mas, mas Mamãe, como poderemos viver sem Papai? Não vou conseguir viver sem ele, sei que não vou e...
- Mamãe (interrompendo George novamente, já meio impaciente): George, claro que vai conseguir. Lembre-se do que diz seu guru, o Freddie: the show must go on... Seja forte e deixe Papai partir. Michael já aceitou. Só falta você. Não agüento mais esta cena horrível...
- George (infeliz, mas conformado): Está bem, Mamãe. Você e Michael estão certos. Eu... eu aceito a morte... a morte.... de Papai...

Os três se abraçam, emocionados. No mesmo instante, uma luz azul-clarinho cai sobre a cama de Papai. Trilha emocionante e fim, amém.

Pois é. Às vezes isso acontece com pessoas vivas, também. É preciso entender que tentou-se de tudo e aceitar o inevitável. E libertar-se, enfim. Uma libertação mútua. Sem luz azul-clarinho, apenas uma compreensão dos fatos, um sorriso e um dar de ombros, acompanhado de um “pelo menos eu sei que tentei de tudo, não foi porque não tinha de ser”.

Acho que vou escrever um livro de auto-ajuda.


postado originalmente em 27/08/05
Pois que, então, assim de repente e meio sem propósito, eu acredito. Conveniente pra mim, claro, acreditar no que me escreves, brecha necessária à entrada do ar, aquele facho de luz que custa tanto fazer de conta que é verdade nos sets de filmagem. Sabe aquela tirinha de sol com poeira a fazendo visível? Tão difícil de criar, tão bonito quando é natural, sem a necessidade de imprimir na película, na memória, no dia-a-dia. Ela existe, e pronto. Mas pra parecer sério, quanta luta.
E de luta estou cansada. Então, acredito. E é bonito e puro que seja assim, penso, enquanto as previsíveis lágrimas acrescentam uma quase música à cena, eu de óculos revivendo o que poderia ter sido. Sim, teria sido cinematográfico, eu abraçando tua carência e comprovando que é preciso muito pouco para ser feliz. Te fazendo acreditar, como eu preciso, que nunca mais o abandono, as dúvidas, o não-querer. E outra vez de repente descubro que seria mesmo possível, como explicar de outra forma essa vontade de te cuidar como se um passarinho, sim, é uma figura gasta, mas como se um passarinho muito novo e frágil caísse em meu quintal e eu tivesse recebido a divina missão de alimentá-lo com minha própria carne, com a água de mim que o faria ver como toda a dor é passageira, refletido agora forte e livre no espelho de nós. Então me surpreendo com a beleza das possibilidades que nunca se concretizam, mas que vivem muito calmas nas estantes, serenamente à espera. Lembro da tua mão na minha, penso mais um pouco no que poderia ser. E adormeço.


postado originalmente em 20/04/05
Então vamos lá, vamos logo encarar isso de frente e começar com os atos ridículos. Previsíveis, quase ensaiados. Vamos lá, abrir a geladeira e começar a chorar ao ver a garrafa de leite, e não por não poder bebê-lo, mas porque ele está lá por uma pessoa que não volta mais. Vasculhar o armário da cozinha em busca de coisas que não como, guardar as roupas que trouxe de volta, espólio de uma guerra longa e perdida. Vamos lá, vamos chorar à vontade por coisas banais, que são as que mais doem, estranha característica dessas coisas que doem. Excluir um contato da lista de endereços, a pergunta educada do programador, “você está pronto para excluir essa pessoa?”. Não. Mas é uma parte das coisas a serem feitas agora que as únicas esperas são a hora de sair do trabalho, ir pra academia, voltar pra casa e ver os pedaços que ficaram da tua vida na minha. Um banho e depois morrer até o dia seguinte, quando tudo começa de novo e sem você. Vamos lá, um novo dia atrás do outro, mesmo que seja entre lágrimas, mesmo que tudo pareça sem cor, mesmo que as canções desafinem, até que a certeza da tua partida fique marcada em meu corpo como uma tatuagem mal escolhida, carregar pra sempre um sinal indesejado, um erro, um atestado frio da minha inabilidade em te amar, da minha pressa em ter certeza que, dessa vez, tudo ia dar certo, tudo ia ser vinho e rosas e uma casa grande e ensolarada. E a cada manhã descobrir que pra sempre é só um amargo na boca, um medo nos olhos e nenhuma vontade de ser feliz.

postado originalmente em 16.03.05

Nota de falecimento

Confirmamos o já anunciado passamento do cronópiocronópio no uolblog. Portanto, postarei aqui os textos que mais gosto e enterrarei de vez aquela joça (entendendo joça como "qualquer coisa que não se possa definir precisamente").
Receberemos as condolências aqui mesmo, sem lágrimas, por favor.

21.11.05

Receita de natal

Num plágio (finalmente) autorizado à receita de Penne com Picanha do Branco

Comece por esquecer a hipocrisia, a decoração medonha do hall de entrada do prédio, as ausências e, sobretudo, as memórias imunes ao shift+del. Prepare-se. Encharque a carne – a sua – com várias doses de qualquer bebida alcoólica. De qualidade, por favor, não vá estragar a receita com ingredientes de segunda. Entre na cozinha e, embalada pelo mais puro entusiasmo, revele à sua mãe que você sabe uma receita incrível de farofinha de bacon. Sim, aquele bacon triturado e misteriosamente sequinho que acompanha o caldinho de feijão em alguns botecos, digo, restaurantes que você frenqüenta.

Vanglorie-se da simplicidade e rapidez da receita. Comece logo com os procedimentos técnicos, antes que algo mais interessante leve embora sua determinação. Pegue um bom pedaço de bacon e fatie o mais fino possível. A carne amolecida pela bebida pode dificultar um pouco esta etapa, mas insista.

De posse de três ou quatro fatias mais ou menos inteiras, pegue uma folha de papel-toalha e embrulhe as fatias de forma que fiquem isoladas umas das outras. Uma fatia, uma volta completa do papel, outra fatia, outra volta completa, e assim até formar um embrulhinho compacto e meio melequento pela gordura do bacon que ficou em suas mãos e que você, de maneira assaz conveniente, esqueceu de lavar.

Coloque o embrulhinho no microondas e empaque. Mentir pra mãe é feio, ainda mais no natal, então confesse que você esqueceu o tempo que o embrulhinho deve permanecer rodando dentro do aparelho. Ignore a sensatez materna, que lhe sugere programar 30 segundos e repetir a operação caso seja necessário, e programe o microondas para um minuto e meio.

Fique ao lado de sua mãe e peça a ela que torça junto com você. Procure despertar da quase hipnose que o rodar do embrulhinho lhe causa quando ouvir sua mãe falar que há uma fumaça negra saindo do microondas. Só então desligue o aparelho e comece a pedir à sua mãe que pare de rir convulsivamente.

Abra a porta. Do microondas. Do apartamento. Abra todas as janelas. Impeça a entrada de seu pai na cozinha, afirmando seriamente que está tudo bem. Esconda-se na área de serviço quando o vizinho vier perguntar se o apartamento está pegando fogo. Tente não revelar seu esconderijo com uma gargalhada ao perceber o esforço que sua mãe faz para não rir na cara do pobre homem, que parece sinceramente preocupado.

Quando a cozinha se parecer menos com uma tarde de fog londrino, feche a porta do apartamento e jogue ao vento as cinzas do embrulhinho, numa homenagem póstuma ao seu empreendedorismo culinário.

Tempo de preparo: dois minutos
Tempo para o cheiro de bacon carbonizado sair do microondas: dois meses
Rendimento: boas risadas e comentários pelos próximos três natais. E sua exclusão sumária da cozinha da sua mãe.

18.11.05

Transição (ou exorcismo, do jeito que o Zeca gostou)

Por se tratar de um texto emblemático (termo que uso em homenagem ao Maurício, da Preto & Branco), resgato do blog antigo esta "carta ao irmão", mesmo contrariando meus fiéis (a fiel que opinou, no caso). Daqui pra frente, só coisas novas. Mas só quando eu voltar a ser Ulisses.

Oi, irmão, tudo bem?

É, eu sei. Nunca mais, eu disse. Me esquece. Eu sei. É que ouvi tua música.

O porteiro ouviu no rádio, perguntou se era meu parente, mesmo sobrenome. Disse que não. Não tenho parentes, não tenho ninguém, sou um homem só, eu disse. Mas baixei a música pela internet. Bonita. Você sabe que eu sempre gostei do que você compõe. Bonita mesmo. Parabéns.

Fico contente em saber que você está bem, levando a tua vida, mesmo depois de tudo o que aconteceu. Acredito que você esteja feliz, tá trabalhando, muito bom.

Mentira. Tudo mentira. Como você se atreve a ter uma vida depois do que fez com a minha?

É, eu sei. Sei exatamente o que você vai dizer. Não tenho culpa se você foi burro o bastante pra pegar uma carona com teu irmão mesmo sabendo que ele estava embriagado. É isso, não é? A culpa é minha. Por confiar. Por me embriagar, também. Por me deixar levar pela velocidade, era tão bom o vento no rosto, a paisagem passando borrada pela janela, vai, acelera, eu dizia, e você acelerou e nós corremos tanto que capotamos no nada, derrapamos em nós mesmos, quatro voltas, disseram, o carro capotou quatro vezes e nos cuspiu pra fora.

Você se machucou, eu sei. Ainda deve ter aqueles pesadelos. Mas você está aí, feliz, tocando. É, você tem os dois braços, ainda pode tocar. A gente ia fazer um disco juntos, lembra? E agora eu não consigo nem assinar meu nome.

Você não entendeu o nunca mais, eu sei. Mas como eu podia deixar meu pequeno me ver daquele jeito, inevitável a auto-compaixão, queria fazer você sentir pena de mim, remorso pelo que me fez, mas não queria que você visse. Não queria que você sofresse por me ver despedaçado, sangrando todas as noites, incomodando os vizinhos com os gritos, murros na parede, sim, um único braço é capaz de esmurrar uma parede com muita força.

Nunca acreditei naquelas histórias de pessoas que sentem dor em membros amputados. Sentir dor no que não existe, que bobagem. E aqui estou eu, incomodado por uma dor constante num braço que virou asfalto, forte essa frase, não? Sem possibilidade de analgésico. Sem poder fazer aquelas coisas bonitas que íamos criar juntos, sentindo uma dor absurda num pedaço do meu corpo que não existe mais, que me foi tirado numa corrida pra lugar algum.

E você aí, comentários favoráveis, grandes elogios. Tua vida continua. Queria conseguir ficar feliz com isso. Até consigo, um pouco, meu pequeno finalmente produzindo, mostrando pro mundo o que sabe fazer tão bem. Mas tudo o que me ocorre dizer é “não é justo”. Você estava dirigindo. E eu é que estou morto agora.

Azar o seu, que nunca soube dirigir, você dirá. Talvez você tenha razão.

O porteiro só conhece a minha cara porque vem receber o condomínio todo mês, essa porcaria de prédio que não tem a capacidade de emitir um boleto bancário com código de barras. Correspondência, por debaixo da porta. Comida, remédios, tudo delivery, os entregadores sobem e me olham com aquela cara de dó, coitado do cara, nem deve conseguir preparar a própria comida. Sem gorjeta, que eu não dou nada pra quem tem pena de mim.

Mas quero que você tenha pena de mim, e por isso não posso te dar mais nada. Mesmo que não fosse assim, não poderia. Não sobrou nada. Nem é um problema que eu não consiga assinar meu nome. Não importa. Voltei a ser Odisseu, eu que era Ulisses tentando voltar pra Ítaca, minha casa, o Kansas do Mágico de Oz.

Por isso, se eu te ferir com estas palavras, não há problema. Agora Odisseu, ninguém sou. Udeis te feriu. Estás a salvo.

16.11.05

Migração

Fiéis, sou eu a infiel.

Sim, traí. Saí do uol e vim pra cá, por puro amor à beleza. Aqui é mais bonito!

Devo postar tudo o que estava no uol aqui? Opinem, caríssimos.