6.12.05

Acho que todo mundo já assistiu a um filme assim. Um senhor de idade beeeem avançada agoniza num leito de hospital. É “Papai”, no filme. Papai tem um casal de filhos (George e Michael. É um casal porque George é travesti e diz a todos que “George” é abreviação de “Georgette”) e uma esposa bem velhinha, também. Essa é “Mamãe”. Papai já está nas últimas faz tempo mas, estranhamente, não empacota (usamos termos chulos para aliviar a tensão do momento). Tentou-se de tudo, esgotaram-se as alternativas de tratamento, os aparelhos já foram desligados, não há mais nada a fazer a não ser esperar pra anotar a hora da morte no atestado de óbito, que já está pronto, apenas aguardando esse último dado burocrático.

Aí, desenrola-se a cena, o clímax do filme.

Interna – Noite
Quarto de hospital. Na cama, Papai, já desligado de todos os aparelhos. Em volta da cama, Mamãe, George e Michael. George chora baixinho. Michael tenta segurar o choro e está meio roxo pelo esforço.

- Mamãe (se afastando da cama): George, Michael, venham cá, por favor.

George e Michael seguem Mamãe até um canto do quarto, longe da cama onde está Papai.

- Mamãe: Queridos, precisamos libertar Papai.
- Michael (olhos arregalados, um pouco menos roxo): Mamãe, o que a senhora está dizendo?
- George: Mamãe, eutanásia não! Papai não está sofrendo. E eu não quero que ele morra, não quero!
- Mamãe: É disso mesmo que eu estou falando, George. Claro que nenhum de nós quer que Papai morra, mas temos que entender que não há mais o que fazer. Temos que aceitar isso. Papai morreu...
- Michael: Mamãe, não diga bobagens, Papai está respirando, dá pra ver daqui...
- Mamãe: Michael, ele só está vivo ainda porque nossos sentimentos não o deixam partir... Temos que aceitar que é o fim, temos que libertá-lo...

- George (desesperado, aos berros): Não! Não, Mamãe, não! Ele não vai morrer! Olha lá, ele está se recuperando, ele...
- Mamãe (interrompendo o ataque histérico de George, enérgica mas compreensiva): George, pare com isso... Você não vê? Esse tipo de sentimento só serve para adiar a partida de Papai... Temos que aceitar, temos que libertá-lo...
- Michael (pensativo): Mamãe tem razão. Já assisti a um filme assim.
- George (tentando enxugar as lágrimas sem borrar a maquiagem): Mas, mas Mamãe, como poderemos viver sem Papai? Não vou conseguir viver sem ele, sei que não vou e...
- Mamãe (interrompendo George novamente, já meio impaciente): George, claro que vai conseguir. Lembre-se do que diz seu guru, o Freddie: the show must go on... Seja forte e deixe Papai partir. Michael já aceitou. Só falta você. Não agüento mais esta cena horrível...
- George (infeliz, mas conformado): Está bem, Mamãe. Você e Michael estão certos. Eu... eu aceito a morte... a morte.... de Papai...

Os três se abraçam, emocionados. No mesmo instante, uma luz azul-clarinho cai sobre a cama de Papai. Trilha emocionante e fim, amém.

Pois é. Às vezes isso acontece com pessoas vivas, também. É preciso entender que tentou-se de tudo e aceitar o inevitável. E libertar-se, enfim. Uma libertação mútua. Sem luz azul-clarinho, apenas uma compreensão dos fatos, um sorriso e um dar de ombros, acompanhado de um “pelo menos eu sei que tentei de tudo, não foi porque não tinha de ser”.

Acho que vou escrever um livro de auto-ajuda.


postado originalmente em 27/08/05

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